"Orixás para pequenos", Arole Cultural é matéria na Revista Quatro Cinco Um
Professora da rede pública apresenta os deuses do candomblé em livro infantil
Começou na tarde em que Róbson Gil chegou em casa animado e contou para a mãe que interpretaria Zeus numa peça na escola, numa encenação sobre os mitos gregos. Foi quando Waldete Tristão, professora “chão de escola” e doutora em educação pela usp, se questionou sobre a grade curricular do ensino brasileiro.
Conhecendo os Orixás, de Exu a Oxalá é uma importante contribuição da fé e mitologia africanas à literatura infantojuvenil do país. Com preciosas ilustrações, traz os itans — passagens que conjugam mitos, canções, histórias — e descreve as características dos orixás negros que compõem o panteão dos deuses do candomblé. Transmite, assim, a ética e uma forma de pensar cultuada pela oralidade dos povos de matrizes africanas que resistiram ao longo da história, numa obra muito representativa para crianças e adolescentes (recomendável inclusive para adultos pouco versados no tema), que poderão ter uma vivência enriquecedora culturalmente — diferentemente da minha geração, que foi à escola no Brasil sem referências de sua ancestralidade, fruto amargo do processo histórico do racismo.
Filha de Oxaguiã, Waldete apresentou ao filho livros clássicos da mitologia africana, e Róbson logo começou a fazer comparações entre os deuses africanos e os gregos: ele, que seria Zeus naquela peça, passou a dizer que seria Xangô. As associações abundaram e os dois, meio de brincadeira, combinaram que fariam um livro. Intelectual de vasta produção, ela se ocuparia de escrever os itans, enquanto o menino, um exímio desenhista, ilustraria o material para disseminar o conteúdo para crianças e adolescentes. Vieram projetos e rascunhos, mas a vida foi passando, vieram os compromissos acadêmicos, as demandas do dia a dia. Ao piscarem os olhos, quase dez anos haviam se passado e Róbson, para tristeza geral, se foi.
A mãe precisou de muito para se reerguer, e por ideia de um amigo (seu futuro editor), retomou o livro. Proprietário da Arolê Cultural, Diego de Oxóssi encontrou Waldete na Bienal do Livro de 2018. O que era para ser só uma visita de cortesia se tornou um convite para escrever um livro infantil. Ao tomar conhecimento do projeto da escritora com seu filho, o editor a colocou em contato com o ilustrador Caco Bressane.
Também filho de Oxaguiã, Bressane desenvolveu com maestria a missão iniciada por Róbson Gil. Suas ilustrações estimulam discussões profundas até para quem tem familiaridade com o assunto. Por exemplo, há quem entenda que os orixás seriam representações abstratas de energia, sem rosto nem tom de pele — o que apaga a sua negritude. Essa interpretação é veementemente criticada pelos autores:
“No nosso caso, isso é inegociável. Estamos tratando de divindades das religiões afro-brasileiras, e são escassos os personagens negros em livros infantis. Ainda que tenhamos no imaginário popular representações como a de Iemanjá com a pele branca, ou outras imagens fruto do sincretismo religioso, orixás são negros. Mesmo assim, procuramos variar muito os traços, tipos e portes físicos de cada personagem, os tons de pele, os tipos de cabelo, os penteados. Tivemos muita preocupação em apresentar essa diversidade”, explica Bressane.
A ambientação da obra procura retratar o domínio de cada orixá sobre um fenômeno da vida ou da natureza. Os cenários, assim, também são protagonistas. “É como se um fosse o outro: a cachoeira e Oxum, a tempestade e Iansã, a estrada e Ogum, o oceano e Iemanjá”, diz Bressane.
O didatismo do texto de Waldete Tristão e a arte de Caco Bressane formam não só uma honrosa homenagem a Róbson Gil como também um livro culturalmente precioso para crianças e adolescentes, em especial em um país que demoniza essas tradições há muito tempo. Por isso, ainda mais tendo em vista a Lei 10.639/2003 — que alterou a Lei de Diretrizes da Educação para inclusão do estudo da cultura africana no ensino público e privado —, trata-se de uma obra fundamental para compor as bibliotecas das escolas brasileiras, e para que nas salas de aula se aprenda quem é Zeus, mas também quem é Xangô.
Por Djamila Ribeiro; texto original em https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/infantojuvenil/orixas-para-pequenos